Há quem diga que cozinhar é uma arte. Outros afirmam que basta tentar e se esforçar, que a coisa caminha. E uns terceiros que têm lá suas dúvidas. Estes últimos se posicionam na arte do talento. Ou a pessoa tem, ou não.
Existem, de fato, muitos e muitos programas de culinária que ajudam os aventureiros emergentes da gastronomia a criarem, copiarem ou até embromarem uma tentativa na chamada culinária caseira. Pode ser que com o tempo acabem pegando gosto pela coisa e quem sabe, irão se esmeram a tal ponto de estudarem ou desenvolverem realmente este dom.
Matilda decidiu cozinhar um prato, bem simplificado, porém deveria seguir um ritual. A primeira coisa era abrir a geladeira. Sim, porque ela abriu a geladeira somente para dar a impressão que era entendida no assunto ou para impressionar apenas, a ela mesmo, pois nessa etapa na cozinha não tinha ninguém além dela na cozinha. Abrir a geladeira significava um grande passo, um “up” na autoestima de Matilda. Logo após veio a fase de passar a mão na cabeça e se perguntar “E agora José?”. Pergunta respondida, Matilda, candidata a "chef" começou a tirar tudo que via pela frente. Ovo, batata (todo mundo tirava a batata na cabeça dela), manteiga, o sanduíche do dia anterior, vagem, cebola, cenoura, milho verde, carne congelada e queijo. Até parecia que dali sairia uma sopa. Geladeira fechada e era hora de olhar a lista dos ingredientes. Cozinheira que é cozinheira tem tudo em casa e à mão. Mas Matilda começou a checar a lista e descobriu que faltava farinha, massa, tomate caso precise, leite de coco, fermento, e até óleo. (Aqui já deu para perceber que tipo de cozinheira ela vestia). Mas como o ânimo já estava em total vigor, a rua logo abriu-se em sua mente e la foi ela para o mercado adquirir os produtos. Faltava isso, levou aquilo, abriu sacola, fechou sacola. E a cozinha de Matilda abarrotou de coisas. Ela não sabia se guardava o que tirou da geladeira, se arredava tudo para o lado ou se sentava no banquinho e rezava uma ave maria para acalmar.
Lista ticada, compras arredadas e era hora de pegar a receita. É aí que ela descobriu que esqueceu a essência de baunilha. Mas, essência de baunilha com vagem? Isso estava muito complicado e a mestre-cuca decidiu simplificar a vida fazendo pastel. Na verdade, ela havia incluído uma massa para pastel nas compras anteriores. E pastel era uma coisa que ela fazia de cor e salteado.
Matilda, então abriu o queijo, cortou em pedacinhos, tirou um recheio de carne que estava pronto e fresquinho, separou as rodelas de massa em cima da bancada de granito ao lado do fogão, colocou óleo na frigideira já para adiantar quando fosse esquentar e começou a receita de cabeça. Era simples: abrir a massa, colocar o recheio, fechar, apertar com o garfo para fazer as dobrinhas, esquentar o óleo e estava pronto o pastel. Neste momento o telefone tocou, e ela ficou sem saber se esquentava o óleo ou atendia o chamado. Resolveu, então, fazer as duas coisas. Só que a pessoa do outro lado da linha começou uma ladainha sem fim, meio e começo, atrasando o serviço e causando ansiedade na chef. E falava de lá, e contava caso de cá, um assunto para boi dormir e galinha fugir. Finalmente, após vários minutos, ela findou o caso mal contado e a cozinheira de plantão saiu correndo para a cozinha em prol da sua dignidade gastronômica e artística na arte de fritar pasteis. O óleo já estava para lá de quente e foi aí que a porca torceu o rabo. Matilda terminou voando a montagem estratégica dos pasteis, colocando tudo na frigideira, virando de um lado e outro as porções e colocando tudo em um belo prato. Estava lá, uma fornada, ou melhor, uma fritada bela e corada de pasteis saborosos e feitos com quase perfeito esmero.
De repente, ela virou para o lado da mesa lateral e observou uma vasilha prateada, com borda preta cheia de coisas dentro. Ela olhou mais cautelosamente e começou a contar o número de pedaços de coisas dentro dela. Contou, recontou, “tricontou” e fez uma cara de susto misturado com indagação. Olhou para o pastel que estava em sua mão, o pastel olhou para ela e os dois se espantaram. Então ela resolveu experimentar seu prato de guloseima salgada que havia acabado de fazer. Ao morder percebeu que estava leve demais. Mordeu mais um pouco, não sentiu nada. Chegou na metade e......... vento. Ela pegou outro pastel e mordeu novamente. Abocanhou mais um pedaço e.........vento. Um terceiro e.........vento. Mais um e.........vento. É quando chegou à conclusão que es-que-ceu-de-co-lo-car-o-recheeeeiiiiioooooooo........
Matilda sentou-se no banquinho lateral, sem saber como iria oferecer aquela vasilha lotada de pastel para os amigos que iriam chegar em breve. Mas o problema é que, se não oferecesse, não conseguiria devorar todos ao longo dos próximos dias.
A história terminou aqui, mas o que se sabe é que as visitas chegaram, "la chef de la cucina" arrumou a mesa, colocou o prato de pastel como se nada tivesse acontecido e ainda disse que a receita era de família, algo que se passava de geração para geração. Os convidados, por conseguinte, davam duas mordidas, degustavam a famosa receita, olhavam uns para os outros como se quisessem se perguntar alguma coisa, faziam meio sorriso elogiando a delícia que acabavam de experimentar e iam satisfeitos pelo talento da famosa "chef" da família. E quem tem coragem, até hoje, de desmentir ou questionar a receita de família feita por Matilda?
E teve gente que ainda ligou no dia seguinte para pedir a receita. Pode?
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